quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O cheiro que faz lembrar


     Muitas coisas ativam nossas lembranças. Ás vezes pode ser uma foto, uma música, uma roupa, uma carta. Ou até mesmo um cheiro. Nunca pensei que eu tivesse uma memória olfativa tão forte, mas naquela manhã ensolarada a caminho da academia eu me surpreendi com o que cheiro me fez lembrar. Eu estava caminhando lentamente, ouvindo uma música qualquer no celular, viajando nos meus pensamentos, apenas realizando o ato involuntário de respirar. E foi numa dessas inspirações que um cheiro me surpreendeu. Era um cheiro antigo, preciso agora contar nos dedos quanto tempo eu não o sentia. São mais de quinze anos.
     Era o cheiro do meu avô. Eu nunca soube que esse cheiro havia me marcado. Nem mesmo imaginava que eu pudesse ainda lembrá-lo, afinal a última vez que senti, eu tinha oito anos. Confesso que a surpresa do cheiro me assustou. Na primeira inspiração eu me desconectei de tudo que estava fazendo e comecei a procurar pelo meu avô, mesmo sabendo que eu não o encontraria. E realmente não o encontrei, mas vi logo a frente um senhor de cabeça branca, com as mãos no bolso assoviando.
     Naquele momento não tive reação nenhuma, mas lembro de fechar os olhos e como num filme através de um cheiro eu revivi minhas memórias. E encontrei a origem dele. Meus pais trabalhavam e eu ficava na casa da minha avó todas as manhãs. Enquanto ela cozinhava eu ficava na barra da saia pedindo para ajudar em alguma coisa e esperava ansiosamente a hora de arrumar a mesa para o almoço. Mas a felicidade maior era quando eu ouvia a buzina do carro do meu avô.
      Ele era taxista e chegava todos os dias pontualmente às 11:30 para almoçar. Ao ouvir a buzina eu corria para debaixo da mesa, que já estava posta, para dar aquele "surpreendente" susto diário. Eu não conseguia enxergar nada, pois a toalha da mesa era enorme, mas pelo cheiro eu sabia quando ele havia entrado na cozinha. E ele fingindo não lembrar do susto que havia tomado no dia anterior, se "assustava" com meus berros. Caíamos na gargalhada.
       Nesse momento eu percebi que eu estava parada no meio do passeio, alguns me olhavam curiosamente e ouve até uma mulher que me perguntou se eu me sentia bem. Não sabia qual resposta lhe dar, apenas balancei a cabeça e comecei a procurar aquele senhor de cabeça branca. Queria segui-lo onde quer que ele fosse, queria aprisionar aquele cheiro, ou pelo menos senti-lo por uma última vez. Mas provavelmente ele já estava longe demais para alcançar. Não que eu não fosse onde quer que ele estivesse, mas eu não sabia mais para que lado ir. 
     Assim que pude fui para casa da minha avó e apesar de algumas mudanças, a mesa estava lá, o pano já era outro, mas por um segundo eu fechei meus olhos e respirei. Nesse momento senti um aperto no peito, um aperto parecido ou pior do que o que eu senti quando soube da sua partida. Acho que é porque apesar de estar no mesmo lugar o cheiro havia partido também e junto com ele havia ido a presença de um herói e as memórias de um tempo bom que não volta mais.
     A súbita passagem daquele senhor por mim numa manhã ensolarada, deixou um cheiro e foi como uma máquina do tempo. Transportou saudades, deslocou memórias, acendeu as luzes. O efeito foi imediato, praticamente instantâneo, mas infelizmente também foi fugaz. Ele me fez esquecer, por instantes, que já deixado de lembrar. Já ouvi falar que toda saudade tem um cheiro, mas naquela manhã descobri também que todo cheiro tinha uma saudade. E aquele, tinha uma saudade gigante de vô.

Mayra Coimbra